quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

(Joan Miró)

Mãe,

Não procure aqui o que você não pode achar, afinal eu não pareço mesmo com você. Meus vícios não são os mesmos que os seus, muito menos as virtudes que eu julgo ter. Nos encontramos todos os dias, mas eu não te vejo há tanto tempo que os abraços, que um dia eu te dei, perderam toda a força de reconciliação. Nossos abraços são como fantasmas vagando em outras vidas longínquas. Não nos assustam mais, não nos fazem sequer companhia. Estamos lado a lado, mas separadas por um mar de mágoa, em que a razão é levada pelas ondas todas as vezes que tentamos alcançá-la...
Somos um vaso quebrado sem conserto, despedaçado em milhões de pedacinhos que voaram por todos os lados, encontrando parada somente no nosso coração. Eles nos espetam todas as vezes que nós tocamos, são dolorosos lembretes da distância, da incompatibilidade de sangue que nos une. Por que? Por que emprestante o ventre para mim? O seu leite foi fel, fui cobra criada, natimorta para você. E na primeira oportunidade te feri mortalmente, irreversivelmente: fiz-te cega. Você, então, só pode sentir o meu cheiro azedo de réptil e recuar enojada. Com o tempo, o destino, rindo baixinho do nosso infortúnio como um moleque levado, achou justo interferir: fez meu rosto à sua semelhança, escondeu o que para você eram feições de cobra e, ironicamente, copiou os seus cabelos em mim...
Você me vê em seu espelho e te (me) odeia. Você vê, nem falamos a mesma língua, as suas palavras não encontram caminho até mim, perdem-se no caminho. Meus sussurros nunca significaram nada para você, são chiados sem sentido. Somos, no fim de tudo, duas partes estranhas unidas por um cordão umbilical, há muito extinto, porém frágil demais para nos aproximar e real demais para nos separar de vez. Temos o mesmo rosto, nossas vozes até soam a mesma, até da sua cegueira - para o amor - eu compartilho. Mas não, não e não. A culpa é toda...nossa! Não nos enganemos, afinal, eu não pareço mesmo com você...
Repito: Não procure em mim o que não pode achar.

Adeus,
C.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Me desculpe amor...(da série Pieguices I)




Primeiro as questões práticas:

observação (atenção: relevante apenas para os chatos) se o meu amor se importasse eu teria de dizer "Desculpe-me amor...", mas como ele não se importa, eu coloco o pronome onde eu quiser. Não amole-me!

observação (atenção: relevante apenas para o Sr. Editor - o imaginário) peço, encarecidamente, que o Senhor faça-me o favor de conservar o pronome do jeito que está - mesmo que seu estômago reclame com espasmos assustadores. Obviamente, o Senhor não está incluso no rol das pessoas chatas citadas acima, não se preocupe. Obrigada.

Recomecemos então o drama...


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Me desculpe amor,

Por molhar seu lençol com meu choro de aspirante à artista fracassada. Choro soluçado: canastrão fingindo desesperança.
Por ser tão tolerante com os meus defeitos intoleráveis e nem um pouco com os seus.
Por não conseguir ficar quieta nem quando você quer um tempo pra pensar sobre a última besteira que eu disse.
Por te sufocar com abraços quando você está assistindo filme, e depois ficar brava porque "Você não me ama mais como antes".
Por te dar beijos estalados na orelha, e rir quando você reclama do eco que eu deixo no seu ouvido.
Por cantar alto os refrões das músicas que a gente gosta, com a minha voz fina demais.
Por forçar você a ouvir todas as canções melosas que ficam na minha cabeça por dias, e ainda ficar brava quando você não finge que gosta.
Por sempre roubar o último pedaço de tudo que você está comendo, e reclamar que nunca tem nada na geladeira da sua casa.
Por te irritar ao extremo, só pra testar o seu auto-controle.
Por te fazer ler meus rascunhos só pra ouvir elogios.

Finalmente, me desculpe amor por ser tão piegas ao ponto de te pedir desculpas pelo nosso amor perfeito.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Sobre a sua existência

O escritor tem horror em ser lido: o leitor lhe põe em pé - nu - e, com os olhos semi-cerrados, vê através de suas carnes.

O escritor tem horror em não ser lido: põe-se em pé - nu - e, com os olhos arregalados, não vê as próprias carnes.


sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Meus pedidos de clemência

- Quero conversar...
- Agora ?
- É, agora!

Meus pedidos de clemência eram sempre ignorados.

Ela se ajeita na cadeira inquieta, tenho a impressão que os seus sapatos apertam os pés, o que a deixa com um eterno ar de desconforto, de quem precisa ir ao banheiro. Os dedos apertados dentro do sapato e o cérebro latejando. Ela respira com a boca escancarada, o nariz não funciona. Tenta sem sucesso encontrar espaço para as pernas compridas, elas se embolavam e não cabem em lugar nenhum, nunca. Ela é minha.
Arruma o cabelo atrás da orelha, engole seco, me olha, olha para as pernas avulsas como se não fossem dela, as cruza, descruza, cruza de novo. A boca começa o abre-e-fecha incessante, eu desisto de acompanhar, as mãos desenham no ar movimentos bruscos, sem sentido. Elas se pousam na testa, se cruzam em cumplicidade, se separam, arquitetam mais piruetas confusas no ar. Me deixam tonto, tenho vontade de dar um soco bem no meio do nariz inútil dela. No mais, a sua voz abafada não me diz nada, estou preso entre a lentidão de distinguir os sons e a irritação crescente de não saber o que eles me dizem. Um calor intenso sobe até meu rosto, me deixa vermelho. Ela morde os lábios, com a malícia de atriz veterana. Um balançar negativo de cabeça e um gesto absurdo com as mãos: surge aquela cara sofrida, já velha conhecida, exagerada, fingida, ela se prepara:

- Tá me ouvindo ? Me pergunta em bom som.

A boca me desobedece, por mais que eu tente, os lábios se selam em greve. Meus pedidos de clemência são sempre ignorados.

As sobrancelhas exprimidas numa careta, o choro forçado, engole seco e me diz algo com eloquência, alguma coisa a ver com - a vida é mesmo assim. Num único golpe eu acabaria com aquele nariz inútil, ou libertaria seus pés dos sapatos apertados, meu cérebro lateja. Se pelo menos ela parasse de falar um pouco... se parasse de falar asn...

- Eu não te amo mais!

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Fatal

Me reviro na cama inquieta, sonâmbula:
piores que os rabiscos que escrevi,
são os que escreverei.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Encontro

Almas gêmeas?
Não sei…
tanto faz.
O que importa
é que minh'alma
quando encontra a tua
a paz se faz.
Minha alma fica nua,
revela-se, desvela-se e nisso se compraz.
Mas quando o meu
penetra o teu
corpo,
tudo nele se contrai
tudo nele se distrai
e faz-se
morto
de prazer.

     (Chacon, Geraldo. Meu Caderno de Poesia. Ed. Flâmula.)